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Capelinha de Rita ainda bastante visitada – sendo visível muletas deixadas ao fundo
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1. Talvez as tradições mais lindas que a história
Conforme o autor José Ricardo Rios, o médico dr. Samuel Genuta tratava os leprosos e sua casa vivia cheia deles, talvez uma gafaria denominada 'Domicílio/Casa do Leproso', e entre os doentes Rita de Andrade, os filhos e, em algum tempo o próprio marido. A coincidência de endereço dado por Genuta e atribuído a Rita, implica a certeza de um mesmo lugar.
Enquanto Dr. Genuta presente na cidade e a cuidar de seus doentes hansenianos, até cumpre aceitação que os mesmos por lá permanecessem internados e sem motivos à perturbação pública, ou implicância policial, contudo, após a ausência do facultativo, os doentes foram retirados da cidade para o lugar conhecido 'acampamento dos leprosos' na Água do Pires, apenas Rita Emboava a residir no local, vez ou outra alguma família de passagem ou visita.
Até 1895 os hansenianos em Santa Cruz do Rio Pardo tinham como endereço o 'Domicílio do Leproso’, e posterior a 1896 os registros de óbitos "provenientes de morféia" tem como endereço quase sempre a fazenda ou bairro Água do[s] Pires, onde levantado o 'Acampamento dos Leprosos' (Cartório Registro Civil de Santa Cruz do Rio Pardo, CD: A/A).
Os leprosos residentes na Água do Pires lá podiam trabalhar para o sustento comunitário, sob compromisso de não entrarem na cidade, e eram assistidos em suas necessidades por irmandades religiosas existentes, como a Nossa Senhora do Carmo, fundada no ano de 1900, a de São Vicente de Paulo – iniciada em 1915, além da Confraria Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, cujos informes indicam-na desde os primeiros tempos de Santa Cruz do Rio Pardo, depois estatutariamente reformulada e aberta sem distinções de cor, para atuações religiosas e caritativas.
Não eram tolerados leprosos recém chegadores ou aqueles que ousassem esmolar na cidade. A polícia agia sempre com extremada vi- olência e o indivíduo era expulso, ou preso e conduzido a algum leprosário distante.
O hebdomadário 'A Cidade', em circulação desde 1909, exigia rigor policial ainda maior, sob justificativa de preservar a população do contágio. "No entanto, bem no interior da cidade morava Nhá Rita, também leprosa. A população sabia bem de seu caso, sobre o qual ninguém falava, nem mesmo o semanário tão zeloso da saúde pública local" (Queiroz Filho, op.cit, p: 195 e referências).
— Que força estranha essa de Nhá Rita fazer calados aqueles que não toleravam o seu mal? Por qual razão aqueles que expulsavam, prendiam e conduziam leprosos ao confinamento, não agiam contra Nhá Rita?
Ocorreu, em verdade, única tentativa em bani-la da cidade, em 1918, por ocasião da gripe espanhola, sabe-se lá se por recomendação de alguma autoridade maior de saúde pública prestando serviços no município, ou a polícia por conta própria, para prender os morféticos que ocupavam uma residência duas quadras abaixo de onde instalada a Cruz Vermelha Brasileira – atual salão de festas da casa paroquial , no período da epidemia. O lugar apontado para a ação perseguidora era onde morava Nhá Rita.
Ritinha, avisada, empreendeu fuga, todavia o Coronel Antonio Evangelista da Silva – o Tonico Lista, mandatário na época, num gesto autoritário ou em atenção à sua irmã Tita (uma das benfeitoras de Ritinha), quiçá outra razão qualquer, mandou seus homens em busca da fugitiva e a fez retornar, em grande estilo, num trole que desfilou pelas ruas da cidade sob aclamações.
Mais comedido que as tradições, ou intérprete melhor, Queiroz Filho assim arremata o mesmo episódio: "Mais que isso, o chefe político da época providenciou condução para sua volta ao casebre, depois de uma fuga que ela empreendeu, atemorizada com a suspeita de também ser presa e removida pela polícia para um leprosário. " (Queiroz Filho, p. 194/195).
Até uma pequena casa de alvenaria o coronel Tonico Lista mandou fazer para Ritinha, sem desmanchar aquela de madeira; e Ritinha ocupou o novo lar até a morte do Coronel, e então voltou para a casa de madeira e nunca deixou ninguém usar a construção doada pelo Lista.
Também o Coronel mandara instalar energia elétrica na casa de Rita, ou iniciativa da própria Companhia, e disto relata Queiroz Filho, à página 195: "O gerente da Companhia de Luz e Força teria pessoal- mente providenciado a instalação elétrica em casa de Nhá Rita".
Ritinha era assim, poderosa, por alguma razão, desde 1871 conforme o primeiro indicativo oficial de sua presença, até quando morreu, em 1931. Talvez lhe pesasse favorável o sobrenome Andrade.
Essa sua atuação permanecia forte nos anos de 1980, quando pelo Decreto Municipal nº 342, de 28 de janeiro de 1983, Rita Emboava foi homenageada com o seu nome para a ponte, sobre o Ribeirão São Domingos, na passagem da atual Rua Luiza Vicencontti Camilotti rumo a Vila Fabiano, bem nas proximidades onde antes parte do terreno de sua moradia.
Para melhores e esclarecimentos e atualizações, pelo referido ato a via de passagem era a antiga Prudente de Moraes, depois José Epiphânio Botelho. Ainda em 1983, outro decreto, também municipal, nº 386, de 30 de setembro, denominou parte da antes Prudente de Moraes/José Epiphânio Botelho, a partir da Rua Catarina Etsuko Umezu [antes Euzébio de Queiroz] em direção à Ponte Rita Emboava e Travessa 1 – Vila Fabiano, para Rua Luiza Vicencotti Camilotti.
Finalmente, a Lei Municipal nº 2598, de 01 de agosto de 2012, denominou Rita Emboava o Conjunto Residencial na Quadra S do Parque das Nações de Santa Cruz do Rio Pardo.
2. Alguns 'milagres' noticiados
Ritinha era amada, e as principais famílias santacruzenses até se revezam em atenções à 'santa', quando esta impossibilitada de andar.
A família Alóe sempre levava alimentos prontos para Ritinha, incluindo doces de coco, goiabada e marmelada, que a benzedeira tanto apreciava.
A família Cortella acudia Rita nas suas necessidades, e inclusive ofertou, após a morte de Rita, o lugar onde se ergueu a Capela. O senhor Ettore havia adquirido grande lote de terra nas proximidades e inclusive o terreno onde outrora morou e morreu a Ritinha.
De outras famílias auxiliadoras de Rita destacaram-se: Berna, Bertoncine, Camarinha, Costa, Guimarães, Pereira Alvim, Queiroz e Tosato, esta que ainda nos dias atuais (2010), pelos ascendentes lembram-se daquela mulher miúda, inofensiva, que não lamentava suas dores e praticante apenas do bem.
Famílias pobres igualmente amparavam Ritinha.
As irmandades religiosas da época levavam a ela medicamentos e alimentos, contudo muitas vezes recebiam de volta os excedentes para entrega aos outros iguais desafortunados, moradores no bairro 'Água do Pires', ou àqueles que as confrarias bem entendessem.
Então, em agradecimento aos seus socorredores, Ritinha retribuía com uma reza ou benzimentos à distância, pelo vão de uma das janelas da casa. Ganhou fama e no terreiro de sua residência construíram bancos onde pessoas aguardavam as bênçãos de Ritinha, ou um momento em que podiam aproximar-se perto do vão para alguma conversa mais particular.
'Sinhá' Rita tinha o carisma em confortar pessoas aflitas, o dom de curar enfermidades, rezava para chover ou fazer sol, e sarava as cri- ações com bons resultados, dizem, sem nunca ter cobrado dinheiro ou favor algum dos solicitantes, mas não os rejeitava. Aceitava pedidos de preces com horários marcados.
Estudantes pediam ajudas para aprovações em provas escolares, uns solicitavam graças para consertar lares desfeitos ou em dificuldades, outros, até casos de amor.
Rita 'curava simioto, bucho-virado, olho-gordo [mau-olhado ou quebranto], cobreiro, barriga-d'água, icterícia, tosse-cumprida, tosse seca, tísica-galopante, espinhela caída, erisipelas, diarreias e febres, além das dores de angústias e das possessões'. Rezava para os animais, para a roça e para o tempo.
Tinha voz suave, porém rouquenha, o que lhe dava certo tom de gravidade nos aconselhamentos. Rita vivia espécie de 'catolicismo po pular' e não diferia em quase nada das benzedeiras e benzedores da sua época, afora que ela não tocava os clientes e não frequentava a Igreja.
Às vezes era acometida de visagens celestiais, ocasiões em que apresentava fenômenos de língua estranha; às vezes atormentava-se com a presença de maus espíritos ou do próprio diabo – diziam, e aí sua voz era cavernosa ou alta estridente, sem harmonias.
Como pessoa, Ritinha "desfrutava de conceito 'muito boa' e 'conformada', embora tivesse uma 'língua terrível' sempre pronta 'aos piores palavrões', à simples presença, às vezes, de uma galinha a lhe entrar pela casa." (Queiroz Filho, 1966: 196).
A notícia da morte de Rita, numa terça-feira de 27 de outubro de 1931, em Santa Cruz do Rio Pardo, foi divulgada 'boca a boca' e pelo serviço de alto-falante da cidade. O prefeito decretou luto e as repartições públicas foram fechadas, então, de repente, nem mais o comércio estava aberto. Assim ainda se lembra uma descendente da família Cortella (2010), e outras pessoas da época têm a mesma memória.
Alguns que nunca viram Ritinha nem foram, em vida, pedir-lhe bênçãos, se recordam que quando da morte dela, 'fechou tudo' e todos foram para lá. Morrera a 'santa'.
Antes do sepultamento de Rita já corriam comentários das primeiras curas pós-morte. Alguém com sopro no coração, em razão de febre reumática ocorrida na infância, que quase nem andava, de repente estava lá presente em última homenagem à falecida.
Outros milagres acontecidos e, depois a seguir, ainda são comentados nos dias atuais (2010), cura de doenças da pele, tipo bouba já com tumores espalhados pelo corpo; cobreiros expandidos – vergões ou placas vermelhas onde se desenvolviam vesículas espalhadas pelo corpo; alergias diversas; asmáticos; dores reumáticas; e aqueles impossibilitados em andar por travamentos na coluna – problemas ciáticos, bastante comuns na época, e alguns claudicantes.
No enterro de Rita compareceram os principais nomes da cidade, ocorreram discursos louvando as qualidades da falecida e de sua vida santificada, os jornais divulgaram notas, e à Rita doou-se túmulo em terreno definitivo. Foi o maior acompanhamento a um funeral, jamais dado a nenhuma outra personalidade, à exceção do Coronel Botelho, "porque neste tinha muita gente de fora" – ainda dizem descendentes que ouviram isto dos avôs.
Rita já em vida era pessoa bem quista, e nela o 'mal' era apenas purificação da alma ou o sacrifício de uma santa, de algum espírito iluminado que escolhera a doença e a miséria para sua última jornada terrena, pois já se pensava isto, e o articulista 'Sertanejo' deixou transparecer essa teologia quando diz de Rita, conforme exposição no início deste estudo.
Aliás, o Correio do Sertão parecia um grande motivador em pro- mover a aceitação de Rita no seio da comunidade, a exemplo da matéria publicada, 'A Leprosa', transcrita de Coelho Neto (Correio do Sertão, 28/11/1903: 1).
Coelho Neto, trata-se Candido Coelho Neto, professor, que desde o final do século XIX manteve escola de ensino particular em Santa Cruz do Rio Pardo, educação primária em secundária pelo sistema externato, para ambos os sexos, ainda em atividade no ano de 1913, à rua Conselheiro Antonio Prado nº 6 – na época (O Município, hebdomadário santa-cruzense, edição de 22/06/1913: 2).
Para alguns descendentes, os antigos sabiam Rita inofensiva, que evitava contato direto com as pessoas, era respeitadora e aceitava com resignação sua enfermidade.
Para estes, Rita ser atendida em suas necessidades, significava que ela ia cuidar dos outros morféticos isolados na casa, por isso ali o denominado 'domicilio dos leprosos' – distinto do 'acampamento dos leprosos', na Água do Pires que ela também servia, e então toda a cidade via-se contribuinte com a caridade, sem remorsos da polícia em prender e encaminhar para os confinamentos os leprosos outros que insistiam permanência na cidade.
Nos anos de 1970 alguns lembravam que Rita era educada, pagava o comércio em moedas colocadas num vasilhame adequado, pedindo para derramar querosene e depois atear fogo, para 'consumir o mal'. Talvez lenda, de Rita ninguém cobrava, ela pedia apenas para o filho e outros doentes e quando absolutamente necessitasse, e nem pedia, propondo escambos com suas mercadorias: bicos de renda, borda- dos e velas, que ela bem sabia, seriam queimadas tão logo adiante.
Tais costumes, em atear fogo nos vasilhames com moedas vindas dos hansenianos, também ditos em outras antigas localidades, seriam práticas instituídas por ávidos comerciantes 'sírios e libaneses', para se evitar 'contaminações'.
Sua casa foi incendiada, após sua morte, inclusive a que lhe dera o Coronel, assim que encerrado o sepultamento, como medida profilática, e alguns fervorosos, acompanhando o procedimento, juravam ter visto Rita sorrindo entre as chamas, liberta de seu mal. Os restos calcinados da 'casa de tijolos' ainda podiam ser vistos nos anos de 1950.
Lamenta-se a ordem ou o consentimento do prefeito Dr. Abelardo Pinheiro Guimarães, que era médico, para os incidimentos com tudo o que havia dentro das casas, inclusive dos possíveis livros e anotações do primeiro médico em Santa Cruz do Rio Pardo, o italiano Samuel Genuta.
Rita ainda em vida seria medianeira e atendia a todos, sem acepções de pessoas ou distinções sociais, e por todos era igualmente respeitada. Até as crianças gostavam da 'santa' e ela, aparentemente, não lhes metia medos.
Os milagres de Rita ou graças alcançadas através dela, não ficaram no antes e dia de sua morte, e sim continuaram num crescente e seu túmulo era repleto de velas e pedidos, seus feitos ganhando projeções e, em 1945/1946, o então prefeito nomeado, Leônidas Camarinha, mandou erigir-lhe uma capela – pagamento de promessa [política], diziam, numa parte do terreno onde ela teve sua casa por décadas.
A construção da capela, por ordem de Leônidas Camarinha, trouxe certo embaraço à Igreja Católica, afinal tratava-se de culto a uma pessoa não canonizada, e o problema resolveu-se dedicando a Ca- pela a Santa Rita de Cássia, cuja vida com certa similitude à Rita Emboava, ambas sobrevivendo aos filhos e marido, a orago a enclausurar-se num convento, enquanto Ritinha forçada ao isolamento pela doença.
Na capela 'particular' de Ritinha celebravam-se missas, até duas vezes por mês – às segundas-feiras, pelas almas do purgatório, e pedi- dos de bênçãos, e os fiéis levavam flores, e cânticos eram entoados e o ofício religioso terminava num congraçamento entre famílias vizinhas e os fiéis participantes. A solenidade religiosa maior ocorria em 22 de maio, dia de Santa Rita de Cássia e a benção das rosas levadas pelos fiéis.
Também existiam as rezas – terços e novenas, pedidos e pagamentos de votos. No túmulo de Rita ainda se acendem velas, fazem rezas e pagam-se promessas, e até mantida a prática usual de se imprimir graças alcançadas. Celebração de missa requerida por algum devoto pelo sufrágio da alma de Rita Emboava, atualmente apenas nas igrejas oficiais.
O vigário proibidor do culto à Rita entendeu que lugar de missa era na matriz e templos legalmente constituídos. Sem padres para o ofício religioso, a tradição caiu no esquecimento, e os objetos que existiam no interior das duas capelas foram retirados, quando das reformas e nunca mais vistos.
Em busca de explicações por qual razão os padres resolveram findar o 'culto a Ritinha Emboava', justamente quando muitos que- riam sua beatificação ou mesmo a condição de santa, certamente de- para-se com o problema da historicidade perdida sobre sua vida, por exemplo, sua filiação desconhecida ou apagada, a significar uma santa sem biografia, num tempo que lendas não mais subsistem, para a canonização de um fiel não iniciado em organismos religiosos católicos.
O 'culto a Rita', observam os autores (SatoPrado), diminuiu, e, apenas vez ou outra ainda se vê alguma reza diante das capelas, exceto no 'finados', algumas velas acesas ou restos consumidos, alguma imagem de santo, e até bilhetes como testemunhos de pedidos ou graças recebidas por intercessão de Ritinha Emboava.
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